Com o início da Judaica, que decorre de 23 a 25 de maio, partilhamos o texto na íntegra que a Escritora Antonieta Garcia teve a amabilidade de escrever para a segunda edição de Belmonte Cultura. A Escritora é autora do livro “Ana dos Rios na inquisição – um livro na fogueira” que será apresentado hoje no Museu Judaico pelas 18horas.
“Amar Belmonte
Olha o Castelo de Belmonte! Avista-se de longe, altaneiro, ilustre, nobre. Convida a entrar. Miradouro de verdes, num céu de luz, as casas aninhadas nas encostas oferecem a hospitalidade, a delicadeza das gentes da Beira.
Belmonte é um monte belo ou um belli monte (monte de guerra)? A verdade fica mais harmónica, se acatarmos a imagem de atalaia dissuasora de investidas de inimigos e lhe associarmos a ideia de «be1o monte» que o olhar livre certifica.
No burgo antigo, esperam-me aventuras à esquina do acaso…. Entrego-me à fantasia e ouço as histórias de monumentos e heróis, um património precioso que enriquece a cultura portuguesa. Convivo com trovadores e bailadeiras, vagamundos sonhadores e poetas, clérigos, camponeses… gente que ergueu com a cruz, a espada e o arado a terra de Cabral.
Desde meninos que os belmontenses entendem que o Castelo e a Igreja de Santiago são antepassados afetivos; ali, seivam o imaginário com as múltiplas histórias protagonizadas pela família Cabral.
A história é longa. Frei António Brandão diz que os Cabrais ficaram em Espanha do tempo dos Gregos e que suas armas (que são duas cabras passantes armadas de púrpura e de preto, e por timbre uma das Cabras do Escudo) …. Informa que, in illo tempore, ocuparam lugares mui honrados, foram senhores de muitas terras. Tantas e tamanhas foram as dádivas de coragem e o valor da intervenção a favor do reino, que João Roiz de Saa explica: “de purpura celestial / sobre prata mui luzente / a geração mui valente / que delas se diz Cabral, / traz sem ouro diferente / e para que estas aponte / seu esforço e lealdade / naquela grão liberdade / do castelo de Belmonte.”
Lenda e História que belmontenses afeiçoaram, ao longo dos tempos, revelando as heranças múltiplas, o tecer de laços com outras culturas. Luiz Vaz de São Payo, nos anos 70 do século XX, afirma que: “O apelido Cabral originário ao que parece dum topónimo da Galiza, daí se espalhou a Castela e Portugal onde surge historicamente na segunda metade do século XIII”.
A ligação a Belmonte teria origem em D. Gil Cabral que nomeou como herdeira, Maria Gil. No testamento, dispõe que institua morgado – Luís Álvares Cabral é o escolhido – e edifique uma capela em honra de Nossa Senhora da Piedade, na Igreja de São Tiago. Sobre esta capela escreveu José Saramago: “O viajante entra, desprevenido, e dados três passos, para sufocado. (…) É um corpo visto por dentro e mais belo do que espera ao entrar. (…) Encostado à parede, um grupo escultórico representando a Virgem e o Cristo morto, ele deitado sobre os joelhos dela, virando para nós a cabeça barbada, a chaga entre as costela, e ela não o olhando já, nem sequer a nós. (…). O viajante tem em Belmonte um dos mais profundos abalos estéticos da sua vida. Aconselha ainda Saramago: Veja tudo…, mas antes de sair coloque-se outra vez diante da Pietá, guarde-a bem nos olhos e na memória, porque obras assim não as vê todos os dias.” Revi a Senhora da Piedade belmontense pelos olhos do Nobel português de literatura e agradeci-lhe emocionada este texto.
Luís Álvares Cabral foi, pois, o primeiro alcaide, primeiro senhor da Casa de Belmonte. Alcaide foi também, Fernão Cabral (III), pai do descobridor do Brasil; integrou os Conselhos de D. Afonso V de D. João II. Foi Regedor de Justiça nas comarcas da Beira e Riba Côa; D. Afonso V cedeu-lhe terras e benesses pelos serviços prestados. Traça-lhe retrato «galante» o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende: “Sois na corte grande / e no campo outro tal.”. As damas do paço confiavam, abriam-lhe o coração e ele “revolvia-lhes as bodas”; elogiava o poeta: “Picais-vos muito d’amor, / Quer nos venha bem quer mal, / Nem há em Portugal/ De damas tal servidor…/.
Casará com D. Isabel de Gouveia. Teve prole numerosa: 6 raparigas e 5 rapazes; entre eles, Pedro Álvares Cabral, escudeiro da casa real, foi o escolhido para comandar a viagem do achamento do Brasil. (Ai, Pedro, quando a inveja comanda… que fazer?) A perda de naus, durante a viagem, revelou-se arma de intrigas palacianas. Magoado, o descobridor do Brasil, deixou a corte. Casado com D. Isabel de Castro, fixa-se em Santarém.
Claro que a memória da família Cabral tem outros contornos; para os moradores mais idosos da vila, a Tulha, atualmente espaço museológico, era o imóvel onde viam chegar os pagamentos, de todos os foros… Mas o convívio continuado com a família nobre e poderosa, a construção do solar – século XIX – um passado quotidianamente recuperado pela memória continua a seivar o imaginário, a encantar desde a infância. A componente de exploração de grandes senhores foi esquecida; sobrou a linhagem de nobreza, cujo expoente maior é o descobridor do Brasil. Leia-se o texto do Jornal “A Serra”: “A Serra saúda a nobre terra de Pedro Álvares Cabral, terra bendita, berço de heróis e de Santos, Jardim formoso em que as flores são lendas encantadoras que a transformam num verdadeiro «Paraíso». (…) A Senhora da Esperança que acompanhou Pedro Álvares Cabral ao Brasil e que foi a santa mais querida de toda a população de Belmonte, é a santa milagreira que espalha toda a esperança àqueles que lha pedem”[1]. O periódico, dirigido por republicanos, a par dos Livros de Actas da Câmara Municipal, permitem configurar o sentir da vila, naquele período. No álbum da memória coletiva, Pedro Álvares e a Senhora da Esperança mantêm lugar de privilégio. Havia reivindicações para melhorar a vila? Havia! “Mas se alguém mais corajoso lembra os nomes sempre queridos de conquistadores e navegadores, de missionários, santos e de bispos e de governadores de que esta terra foi berço, esquecem-se as misérias atuais e julgam-se, os Belmontenses, os entes mais felizes do universo”.
É este o encanto de Belmonte senhor de uma identidade mítica, cujas traves-mestras passam pela sagração das heranças e das histórias da família Cabral.
Pedro Álvares Cabral criou uma solidariedade anímica com Terras de Vera Cruz. Em Belmonte é quase venerado.
Lembro que no Panteão dos Cabrais, na Igreja de S. Tiago, já no século XX, foi colocado um sarcófago que contém cinzas do navegador, frente ao altar. Pela proximidade, encobre totalmente, a porta do Carneiro, datada de 1630. Sugeriu-se, um dia, a deslocação do sarcófago para tornar visível o carneiro do Panteão, raros nas igrejas da Beira e testemunhos de uma época específica de inumação de corpos. Mas, “Aquele é o espaço mais sagrado!”, logo é aquele que Pedro Álvares Cabral deve ocupar. O maior pergaminho da vila é ser terra mãe do herói. É frequente, entre os naturais de Belmonte, ouvir a expressão “proceder à Pedro” – que legitima qualquer ato, ratifica um comportamento conforme aos cânones de honradez, coragem, frontalidade, qualidades que até a mesma água de batismo, garantiria. Afirmava orgulhosamente uma funcionária da Câmara Municipal que acompanhava os visitantes à Igreja de Santiago, até à primeira metade da década de 80: “Aqui – apontava a pia batismal – foi batizado Pedro Álvares Cabral e eu também… e todos os que nasceram até 1940”.
Outro espaço sagrado é o Castelo. Sujeito a uma intervenção, que visou a revitalização do espaço, entre 1989 e 1992. E se as escavações acrescentaram conhecimento à História da vila, valeu também a edificação de um anfiteatro para realização de espetáculos, a construção de acessos às janelas do Castelo, excelentes miradouros… Ainda assim, houve protestos. Os mais radicais afirmavam: “Se todos fossem da minha força, deitávamos aquilo tudo abaixo!”. Falava o receio de que se perdesse um marco identitário poderoso. Múltiplos elogios acabaram por favorecer a ligação da população, com o Castelo. Felizmente benfeitorias várias foram introduzidas posteriormente, até hoje.
A estátua do navegador é um marco espacial na vila. Junto ao Pedro, se marcam encontros; a intimidade e cumplicidade que emergem de uma longa vivência em comum, permitem a familiaridade. Não há comemoração, festa, que não inclua uma romagem à estátua. A data do feriado municipal foi escolhida para celebrar a primeira missa celebrada em terras do Brasil – 26 de abril de 1500 -. Anualmente renova-se o ato sagrado. As procissões – 25 e 26 de abril – com a imagem da Senhora da Esperança que, segundo a tradição, acompanhou Pedro Álvares Cabral, na viagem ao Brasil, são também ponto alto das festividades. A Senhora da Aparecida, oferecida a Belmonte pelo Brasil, cultuada no mesmo altar da Igreja Matriz de Belmonte, acompanha-a. Velas de vários tamanhos, oferta de mantos para a Senhora, a ornamentação de andores que se disputa a anos de distância, as ofertas em ouro, dinheiro, revelam a fé que o povo de Belmonte deposita na Senhora que não sendo padroeira, é a santa mais venerada.
De Belmonte, a Senhora da Esperança não sai: é o povo que a protege, fazendo vigílias à porta da Igreja, sempre que paira a possibilidade de figurar numa exposição fora da localidade. De resto, a transferência da Igreja de S. Tiago para a atual Matriz é justificada: Na Igreja Nova, a Senhora “… está mais protegida”.
Este é o meu Belmonte. O convívio com aventureiros de vários sonhos, nas naus que sulcaram mares, em demanda do Mundo Novo, vive-se pela memória.
Por tudo isto, o turismo, sustentado pelo património histórico e arquitetónico, é um sector de importância considerável no desenvolvimento do concelho. São frequentes as deslocações à localidade de pessoas que procuram conhecer a terra-mãe de Pedro Álvares Cabral, o descobridor oficial do Brasil e… onde existe uma comunidade judaica apontada como única, em Portugal e no mundo. A Tulha, o Solar dos Cabrais, a Judiaria, e desde novembro de 1996, a Sinagoga construída de raiz, o Museu Judaico e outros… atraem a curiosidade de nacionais e estrangeiros…
A presença de uma comunidade judaica, na vila, não foi alheia à manutenção e preservação dos símbolos identificadores de não judeus. A “linhagem” da família Cabral conferia prestígio, assegurava a mestria de identidade pela afirmação enfática da história, de mitos, de modelos. Ora, a coexistência, em Belmonte, de não judeus e de uma comunidade judaica, com identidades culturais, marcadas por traços diferenciados, privilegiando linhagens distintas, favoreceu os processos de produção simbólica dos grupos e a sua reprodução.
É este o meu Belmonte; falamos como velhos amigos. Pelas ruas cruzei-me com gentes que sempre saudei e com as lembranças de notáveis… Fiquei cativa da vila.
A 25 de Abril de 1974, morava na atual Rua dos Cravos, numa casa alugada a Abílio Morão. E vi crescer Belmonte como um velho senhor, galante. Aos genes aristocratas foi buscar o bom gosto; aos plebeus a argúcia, a determinação, a sobrevivência…. Andou pelos teares, pelas confeções… Atualmente a Educação e o Turismo são focos relevantes de desenvolvimento do concelho. O que falta para ser uma joia da Coroa?
Não há urbe sem deuses e sem demónios, sem generosos e interesseiros, sem trabalhadores e militantes da preguiça. Belmonte, senhor ilustre e grave sempre conheceu uns e outros. Soube escolher. Agora, que é do pastor para sonhar três noites seguidas com o tesouro, «Amar Belmonte», para que se cumpram todas as utopias?!
[1] Jornal “A Serra”, Belmonte, 24 de setembro de 1925.”